vezenquando

Monday, August 28, 2006

Enfim, pequenas epifanias

“Há alguns dias, Deus – ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus – enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor.”

Quando li essas palavras pela primeira vez, escritas com a letra redonda e caprichada de uma amiga, não imaginei o quanto seriam importantes para mim. Lá se vão pelo menos sete anos, eu estava no segundo ano da faculdade, a vida se abria em possibilidades e era tão boa. A Ana Paula, amiga-vizinha que estudou comigo no ginásio, me entregou a folha de papel monobloco escrita à lápis com o conto. E me disse: Leia Caio Fernando Abreu, você vai gostar Eu lia absolutamente tudo que me chegava às mãos, mas esse escritor era um completo desconhecido.

Poucos dias depois, apareceu na minha caixa de correio o livro “Pequenas Epifanias”, do tal Caio Fernando Abreu. A capa era uma terra gretada marrom com uma flor desabrochando. O título em amarelo. As páginas meio velhas e com orelha de burro. Emprestado da biblioteca da faculdade e com um bilhetinho da Ana na primeira página. Acho que pedia para eu devolver depois de ler.

Devorei o livro no ônibus, na varanda de casa com o vento virando as páginas, no pátio da reitoria. Aprendi em lições como atravessar agostos, soube afinal de contas que o vazio que sentia tinha nome: ciclo seco. E não tinha solução. Descobri girassóis, azaléias, margaridas, o perfume de setembro e os cacos de vidro azuis que fazem clack!. Encontrei Cortázar, voragens, estrelas, anjos tortos, rua Augusta, escorpiões, gêmeos e Lou Reed.

E devolvi o livro. Com outro bilhete. Durante todos os anos da faculdade eu e a Ana trocávamos confissões nas páginas do livro. E, sem nos falarmos, fomos nos encontrando em outros títulos, em outras bibliotecas: Ovelhas Negras, Morangos Mofados, Triângulo das Águas, Onde Andará Dulce Veiga?. Sempre a mesma caligrafia, minha e dela. E depois viajamos pelas estantes: Clarice Lispector, Hilda Hilst, Lya Luft...

Mas o Pequenas Epifanias, que é um livro e também conto, foi o primeiro e o melhor. Me ensinou a sentir, revelou feitiços, veni de sancta sede Adonai, moldou parte do que sou, do que gosto, do que vejo. Me acompanhou quando me apaixonei, quanto tudo acabou, quando tudo voltou, quando alguém viaja, quando me decepciono com a profissão, quando me maravilho com ela, quando mudei pra São Paulo, quando tudo. Quando mudei pra São Paulo. E fiquei sem o livro, que era da biblioteca e sempre estava lá encostado. Sem os bilhetes da Ana. Sem Caio, sem pai, sem mãe.

Três anos buscando alguma editora que tivesse o livro, eu preciso daquelas palavras. Nem o Google ajudou. Eu queria saber o que o Caio sentia quando foi jogado nessa cidade cinza, eu sabia que estava tudo lá, organizado e decifrado. Mas nada. Nem em FNAC, Cultura, Amazon, biblioteca, nem na USP, em lugar nenhum. Pensei em roubar o livro da UFPR. Mas, feliz ou infelizmente, ela não abre aos sábados, quando poderia cometer o delito.

Enfim, tudo isso para dizer que hoje consegui. No meu passeio mensal pela FNAC, passo os olhos pela prateleira onde os contistas brasileiros se reúnem, sem esperar encontrar coisa alguma et voilá! O título brilha: "Pequenas Epifanias". Não está em amarelo, não tem a terrinha gretada, mas os contos estão todos, completos. Lindos, revisados. Descubro que eram escritos para o Estadão. E penso: olha os caminhos que se cruzam. Pago a pequena maravilha e junto a um cd do Morcheeba que também já tinha desistido de procurar. É domingo, fim de tarde, sol frio, e minha felicidade está completa. Claro que faltam uns bilhetes de cumplicidade no pé da página. Mas ainda assim é Caio F., em nova edição e revisitado ao som de "Slow Down" e "Sao Paulo". O que mostra, no mínimo, que as laranjeiras estão florindo e setembro, finalmente, está chegando.

Sunday, August 06, 2006

Roubei

Foi amor à primeira vista. Bati o olho e apaixonei nesse texto aqui embaixo. Talvez porque já escrevi na minha cabeça pelo menos umas 20 versões dele... Só esse ano, umas três.
É da Casa dos Trinta, blog que, decididamente, vou começar a freqüentar. A autora, Paula Schütze, é amiga de amiga nova.
Copio todo, para roubar com dignidade (mas preservo direitos autorais, copyrights e etecéteras). Coisa de curitibana...

Texto não - versão 2006

A história que não vivemos é linda, cheia de coisas que não fizemos, CDs que não ouvimos, compras de supermercado que não fizemos, noites que não dormimos e brigas que não tivemos.

Mas um dia... um dia você vai ler as cartas que eu não enviei, os e-mails que não saíram da minha caixa de rascunhos. Vou te contar os diálogos que não tivemos, falar das lágrimas que não derrubei, os textos que não publiquei, as fotos que não tirei.

A história que não vivemos é cheia de momentos que não existiram, palavras que não saíram, músicas que não cantamos esgoeladamente, dores que não compartilhamos e alegrias que não tivemos.

Na história que não vivemos sobra tempo e até faltam palavras para permear todos os cafés que nunca tomamos após os filmes que não assistimos. Os beijos de boa noite que você não me deu, as mensagens de bom dia que eu não deixei penduradas no espelho do banheiro que não dividimos.

Na história que não vivemos, você não chegou em casa do trabalho, encharcado por uma enorme tempestade de verão e eu não estava te esperando com o telefone na mão, ansiosa para não pedir uma pizza que nunca chegou. As garrafas de vinho que não abrimos por conta das taças que não derrubamos sobre os tapetes que nunca sujamos.

Mas um dia... um dia teremos todo o tempo que não tivemos para não pensar nas coisas que não fizemos.

Lies! You're telling me that you'll be true...

Além da premonição, as mulheres da minha família têm outro dom: desvendar segredos. Minha avó, quase surda, meio cega, sempre sabia o que estava acontecendo com todo mundo – especialmente quando ninguém lhe contava nada. Ela tinha certeza de que o filho havia se separado da mulher, sabia por que a caçula deixou de ligar, quando e onde o mais novo encontrou fulana ou ciclana, soube quando meu avô iria desaparecer. Já tão velhinha e doente teve certeza, sedada e no hospital, que ele estava no corredor ao seu lado, em outra maca. E ninguém havia lhe dito uma palavra sobre o assunto.

Minhas tias, as quatro, sempre souberam o que o futuro lhes reservava. Com um olhar, descobriram qual era o homem reservado para elas. Souberam quando foram traídas. E perdoaram.

Criança, eu não entendia por que minha mãe sempre aparecia nos momentos em que faria algo escondida. Como ela sentia que eu estava apaixonada, descobria que havia chorado, ficado nervosa, visto aquele menino. Adolescente, tentei contar algumas histórias para passar mais tempo de bobeira na faculdade ou ir ao cinema com alguém que não era a minha amiga. Tudo em vão. Quando chegava em casa, ela olhava nos meus olhos e tinha certeza. Só pedia para que eu dissesse a verdade. E confirmasse o que ela já sabia.

O que eu nunca tinha percebido, é que herdei o dom. Quando meu irmão mais novo se apaixonou e começou a contar as mesmas historinhas que eu um dia tentei passar adiante, ria da ingenuidade dele. Como é que ele achava que alguém ia acreditar no que estava contando? Eu e minha mãe só o olhávamos, atônitas. E desculpávamos. Depois de tantos anos de convivência, meu pai desistiu de tentar fingir qualquer coisa. Fica mudo. E custa a perceber que nosso olhar é de cumplicidade.

Para mim, é muito fácil reconhecer um homem pilantra, uma mulher dissimulada. Sei quando tem outra no meio da história, quando as palavras são verdadeiras ou não. Basta um detalhezinho sem importância. Quando comento minhas divagações com alguém, normalmente a pessoa cai risada. “Rita, você tá é ficando doida.” Dias, semanas, meses depois, vem a confirmação.

Mas tanta terapia, tanto acredite no que digo e alguns enganos – toda mulher, mesmo na minha família, é falível – me mostraram que, às vezes, vale à pena acreditar que estou errada. Que, vá lá, ele não respondeu a mensagem porque não viu, não porque estava saindo com outra menina. Sumiu no fim de semana porque... ah, porque também tem família e não porque está indo ver aquela mesma menina. Não me chama pra sair porque é tímido mesmo, não porque desinteressou. Naquele dia, não atender ao telefone não foi uma mentira deslavada, ele realmente esqueceu o celular no bolso da calça. Parou de responder os emails porque está mesmo muito atarefado lá na gringolândia. Não porque encontrou uma namorada nova... Que minha vontade de não sair de casa nesta noite é preguiça. Não o pressentimento de que vou ver algo que não devia. Cada pessoa tem um jeito de gostar diferente, eu é que sou muito pessimista.

Mas o pior, o pior mesmo é que normalmente eu acerto. E só preciso que alguém me fale os detalhes da história que eu já sei. Para que tudo fique bem de novo. Aliás, como qualquer mulher.