vezenquando

Wednesday, March 10, 2010

Sempre essa coisa ausente...




Veio de presente em um dia terrível a imagem da frase que só vezenquando desaparece da minha cabeça. A dona da foto e do lampejo de luz no meu dia é uma daquelas raras pessoas, cada vez mais e mais raras, que divide comigo ideias, paixões e o Caio. E eu sempre me entendo com quem gosta dessas literaturas. Alguém mais fanática que eu pelos traços que esse autor deixou pelo mundo encontrou o endereço que eu esqueci, evitei, deixei pra trás no meio de tanta felicidade que foi aquele verão francês. E colou junto da foto, o texto. A frase voltou com cor, como um abraço apertado dentro do deserto de almas, me dizendo que tudo bem, as coisas são assim mesmo. As pessoas mais vão que vêm e não há nada mais natural. Terrível, terrível.

Então, deixo aqui a crônica que anda comigo desde que eu mergulhava em páginas empoeiradas em uma biblioteca fria em Curitiba, e que me fez um dia chorar na exposição da Camille Claudel numa longínqua Paris, pensar na liberdade de laços totais quando tudo dá errado, ter fome de ver e tentar negar que sempre, sempre falta alguma coisa.

*****

Paris — Toda vez que chego a Paris tenho um ritual particular. Depois de dormir algumas horas, dou uma espanada no rodenirterceiromundista e vou até Notre-Dame. Acendo vela, rezo, fico olhando a catedral imensa no coração do Ocidente. Sempre penso em Joana d’Arc, heroína dos meus remotos 12 anos; no caminho de Santiago de Compostela, do qual Notre-Dame é o ponto de partida — e em minha mãe, professora de História que, entre tantas coisas mais, me ensinou essa paixão pelo mundo e pelo tempo.

Sempre acontecem coisas quando vou a Notre-Dame. Certa vez, encontrei um conhecido de Porto Alegre que não via há pelo menos 20 anos. Outra, chegando de uma temporada penosa numa Londres congelada e aterrorizada por bombas do IRA, na época da Guerra do Golfo, tropecei numa greve de fome de curdos no jardim em frente. Na mais bonita dessas vezes, eu estava tristíssimo. Há meses não havia sol, ninguém mandava notícias de lugar algum, o dinheiro estava no fim, pessoas que eu considerava amigas tinham sido cruéis e desonestas. Pior que tudo, rondava um sentimento de desorientação. Aquela liberdade e falta de laços tão totais que tornam-se horríveis, e você pode então ir tanto para Botucatu quanto para Java, Budapeste ou Maputo — nada interessa. Viajante sofre muito: é o preço que se paga por querer ver “como um danado”, feito Pessoa. Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio.

Enrolado num capotão da Segunda Guerra, naquela tarde em Notre-Dame rezei, acendi vela, pensei coisas do passado, da fantasia e memória, depois saí a caminhar. Parei numa vitrina cheia de obras do conde Saint-Germain, me perdi pelos bulevares da Île de la Cité. Então sentei num banco do Quai de Bourbon, de costas para o Sena, acendi um cigarro e olhei para a casa em frente, no outro lado da rua. Na fachada estragada pelo tempo lia-se numa placa: “II y a toujours quelque chose d’absent qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) — frase de uma carta escrita por Camilie Claudel a Rodín, em 1886. Daquela casa, dizia a placa, Camille saíra direto para o hospício, onde permaneceu até a morte. Perdida de amor, de talento e de loucura.

Fazia frio, garoava fino sobre o Sena, daquelas garoas tão finas que mal chegam a molhar um cigarro. Copiei a frase numa agenda. E seja lá o que possa significar “ficar bem” dentro desse desconforto inseparável da condição, naquele momento justo e breve — fiquei bem. Tomei um Calvados, entrei numa galeria para ver os desenhos de Egon Schiele enquanto a frase de Camille assentava aos poucos na cabeça. Que algo sempre nos falta — o que chamamos de Deus, o que chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede, faz parte. E atormenta.

Como a vida é tecelã imprevisível, e ponto dado aqui vezenquando só vai ser arrematado lá na frente. Três anos depois fui parar em Saint-Nazaire, cidadezinha no estuário do rio Loire, fronteira sul da Bretanha. Lá, escrevi uma novela chamada Bem longe de Marienbad , homenagem mais à canção de Barbara que ao filme de Resnais. Uma tarde saí a caminhar procurando na mente uma epígrafe para o texto. Por “acaso”, fui dar na frente de um centro cultural chamado (oh!) Camille Claudel. Lembrei da agenda antiga, fui remexer papéis. E lá estava aquela frase que eu nem lembrava mais e era, sim, a epígrafe e síntese (quem sabe epitáfio, um dia) não só daquele texto, mas de todos os outros que escrevi até hoje. E do que não escrevi, mas vivi e vivo e viverei.

Pego o metrô, vou conferir. Continua lá, a placa na fachada da casa número 1 do Quai de Bourbon, no mesmo lugar. Quando um dia você vier a Paris, procure. E se não vier, para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo.

Caio Fernando Abreu - O Estado de S. Paulo, 3/4/1994

4 Comments:

At 1:30 AM, Anonymous lets said...

ah, chorei quando tirei a foto. quis compartilhar com vc, mandei de la e as modernidades telefonicas nao ajudaram. talvez, nao era mesmo pra chegar. e agora, chorei de novo! por td! por camille, eu, caio, vc, por paris e toda aquela coisa que faz falta e sempre, sempre fará! só corrigindo o caio, penei pra achar, pq fica no 19 da quai de bourbon, tive q voltar uma segunda vez pra achar! coisa de fanatica, achei, dois ou tres dias depois, num domingo lindo, gelado e de ceu azul!

 
At 1:41 AM, Anonymous lets said...

e mais: no proximo cafe, vou mostrar. levei esse conto impresso num sulfite, li, reli, todos os dias, varias vezes. no hotel, no metro, no rer para poissy, no charlles de gaulle, no quai de bourbon, no banheiro. nao tive coragem de jogar fora, voltou comigo, caindo aos pedaços e vai, vai ficar comigo...

 
At 5:53 PM, Blogger Rita Loiola said...

Que bom ter você na minha vida...

 
At 10:34 PM, Blogger Maikon Augusto Delgado said...

Lindo texto!

Beijo.

 

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