vezenquando

Friday, May 23, 2008

Café

Ao som de Opus 23, Dustion O'Halloran


Ela disse que não, nunca mais esqueceria aquela tarde. Que dessa vez tinha acabado com tudo, afogado o seu romantismo num belo lago. E com estilo, nos jardins de Versailles, porque já que é para terminar, ao menos que seja com glamour. E falou da luz meio embaçada da tarde, das árvores muito verdes, do rio espelhado, castelo, espelhos, e disse que achou tudo tão bonito que quase andava nas nuvens. Então ela olhou por cima da xícara de café e enumerou as cores, o sol dourado em todas as portas e portões, as flores. Riu e lembrou que desde pequena tinha a imagem de um jardim em labirinto na cabeça, mas não tinha percebido que era ali, onde estava pisando. Então disse devagar que andava pelas aléias e na sua cabeça tocava a trilha sonora de um filme, aquele da Maria Antonieta... mas não sabia direito porque tudo tinha que sempre parecer um filme, uma novela meio tragicômica.

Perguntei se a novela tinha a ver com o afogamento e ela respondeu olhando pela janela que no meio de todo esse jardim de sonhos tinha esbarrado em sei lá quem abraçado com sei lá quem outra. Pensei que provavelmente esse sei lá quem devia ser alguém importante, porque ela disse que depois a tal sensação de andar nas nuvens tornou-se vertigem. E foi falando um pouco baixo que havia coisas que se repetiam tanto e ela não entendia, mas que era assim mesmo, ultimamente ela tinha aprendido que é melhor viver so o agora, sem pensar muito no que vai vir. E disse com uma risada meio alta, depois de um gole d’água, que aproveitou para fazer um afogamento coletivo, das esperanças e do romantismo. E falou muitas coisas depois, uma noiva e fotos, um piquenique, risadas e amigas, um pouco de choro – mas não dela – remadores no canal e a cor do céu naquele dia. E foi falando, falando e fiquei lembrando dos cabelos compridos, antigamente, dos cachos e das cartas que mandava com esperanças de caminhar acompanhada pela beira do Sena, de esperar alguém na estação, das roupas coloridas, do jeito que cantava alto em uma pista de dança escura em algum lugar distante.

Bebeu mais um gole do café e disse que estava muito feliz com o assassinato do lago porque, no fim, descobriu que estava sozinha e bem feliz, de uma felicidade que tinha esquecido como era. Ficou argumentando tudo isso e eu olhava suas mãos um pouco grossas e pensava estranhamente na época em que alguém cozinhava abóbora com cal na cozinha e nós dois ficávamos olhando pela janela o dia de chuva. Com as pernas cruzadas em cima da almofada, ela inventava histórias para as gotas que escorriam no vidro, se juntavam, se separavam, se uniam a outros fios d'agua. E ela repetiu que tinha sido melhor assim, empurrar esses pensamentos para longe porque, em tanto tempo, não tinham levado a muita coisa. Falou de sinais, de cacos de garrafas pela rua, de ausências, de primavera e de pessoas com quem tomava sorvetes sabor de flor. Fiquei olhando seus olhos e alguma coisa tinha mudado, alguma coisa verde no fundo de um rio límpido. E voltei àqueles dias em que ela gravava cds de músicas que falavam de amor, do quanto gostava de Roberto Carlos e de Mário Quintana, dos e-mails que escrevia falando de jantares e vinhos, de mãos dadas, de caminhadas à noite, de solidão e de pequenas epifanias.

Limpou os óculos, sorrindo, e foi dizendo que era sempre muito bom me ver, mas precisava ir. Contou que ainda tinha que estudar um pouco e trabalhar um tanto porque a noite chegava muito tarde e embaralhava as horas. Disse que depois de tanta coisa estava assim, um pouco distraída e bem atrasada. Perguntei para o que estava atrasada, mas ela afastou o cabelo dos olhos e disse alguma coisa provavelmente em francês, porque não entendi a resposta. Enquanto pagava a conta, uma garoa fina começou a sujar as janelas do café. Saiu enrolada em casacos, bolsa e sacolas. Abri uma revista e, enquanto folheava, eu quase podia ver as gotas de chuva escorrendo lentamente, se juntando-separando, pelas lentes em seu rosto.

3 Comments:

At 3:24 AM, Anonymous Anonymous said...

clap, clap, clap

 
At 5:03 AM, Blogger Unknown said...

Eu acho que publiquei um recado há dois minutos, dizendo que meus lagos têm me deixado de ressaca.

Ou talvez seja só mais um efeito dos meus lagos.

Beijos,
Xandão

 
At 7:11 PM, Blogger Mari Carpanezzi said...

Que bonito, Ritinha. Acho que deve ter durado dois minutos, mas durou horas.

 

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