Enfim, pequenas epifanias
“Há alguns dias, Deus – ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus – enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor.”
Quando li essas palavras pela primeira vez, escritas com a letra redonda e caprichada de uma amiga, não imaginei o quanto seriam importantes para mim. Lá se vão pelo menos sete anos, eu estava no segundo ano da faculdade, a vida se abria em possibilidades e era tão boa. A Ana Paula, amiga-vizinha que estudou comigo no ginásio, me entregou a folha de papel monobloco escrita à lápis com o conto. E me disse: Leia Caio Fernando Abreu, você vai gostar Eu lia absolutamente tudo que me chegava às mãos, mas esse escritor era um completo desconhecido.
Poucos dias depois, apareceu na minha caixa de correio o livro “Pequenas Epifanias”, do tal Caio Fernando Abreu. A capa era uma terra gretada marrom com uma flor desabrochando. O título em amarelo. As páginas meio velhas e com orelha de burro. Emprestado da biblioteca da faculdade e com um bilhetinho da Ana na primeira página. Acho que pedia para eu devolver depois de ler.
Devorei o livro no ônibus, na varanda de casa com o vento virando as páginas, no pátio da reitoria. Aprendi em lições como atravessar agostos, soube afinal de contas que o vazio que sentia tinha nome: ciclo seco. E não tinha solução. Descobri girassóis, azaléias, margaridas, o perfume de setembro e os cacos de vidro azuis que fazem clack!. Encontrei Cortázar, voragens, estrelas, anjos tortos, rua Augusta, escorpiões, gêmeos e Lou Reed.
E devolvi o livro. Com outro bilhete. Durante todos os anos da faculdade eu e a Ana trocávamos confissões nas páginas do livro. E, sem nos falarmos, fomos nos encontrando em outros títulos, em outras bibliotecas: Ovelhas Negras, Morangos Mofados, Triângulo das Águas, Onde Andará Dulce Veiga?. Sempre a mesma caligrafia, minha e dela. E depois viajamos pelas estantes: Clarice Lispector, Hilda Hilst, Lya Luft...
Mas o Pequenas Epifanias, que é um livro e também conto, foi o primeiro e o melhor. Me ensinou a sentir, revelou feitiços, veni de sancta sede Adonai, moldou parte do que sou, do que gosto, do que vejo. Me acompanhou quando me apaixonei, quanto tudo acabou, quando tudo voltou, quando alguém viaja, quando me decepciono com a profissão, quando me maravilho com ela, quando mudei pra São Paulo, quando tudo. Quando mudei pra São Paulo. E fiquei sem o livro, que era da biblioteca e sempre estava lá encostado. Sem os bilhetes da Ana. Sem Caio, sem pai, sem mãe.
Três anos buscando alguma editora que tivesse o livro, eu preciso daquelas palavras. Nem o Google ajudou. Eu queria saber o que o Caio sentia quando foi jogado nessa cidade cinza, eu sabia que estava tudo lá, organizado e decifrado. Mas nada. Nem em FNAC, Cultura, Amazon, biblioteca, nem na USP, em lugar nenhum. Pensei em roubar o livro da UFPR. Mas, feliz ou infelizmente, ela não abre aos sábados, quando poderia cometer o delito.
Enfim, tudo isso para dizer que hoje consegui. No meu passeio mensal pela FNAC, passo os olhos pela prateleira onde os contistas brasileiros se reúnem, sem esperar encontrar coisa alguma et voilá! O título brilha: "Pequenas Epifanias". Não está em amarelo, não tem a terrinha gretada, mas os contos estão todos, completos. Lindos, revisados. Descubro que eram escritos para o Estadão. E penso: olha os caminhos que se cruzam. Pago a pequena maravilha e junto a um cd do Morcheeba que também já tinha desistido de procurar. É domingo, fim de tarde, sol frio, e minha felicidade está completa. Claro que faltam uns bilhetes de cumplicidade no pé da página. Mas ainda assim é Caio F., em nova edição e revisitado ao som de "Slow Down" e "Sao Paulo". O que mostra, no mínimo, que as laranjeiras estão florindo e setembro, finalmente, está chegando.
6 Comments:
sem contar que em setembro tem ferdinandos e que o ingresso pro show tb fez parte desse seu ótemo domingo!
bjocas!
menina, adorei te ver sábado!
ai. deixa eu tomar um fôlego...
UAU
Depois desse texto, eu MUITO preciso pegar essa dica de livro. :)
Bicocas!
pois é. eu também levei um susto quando em uma das minhas visitas quinzenais pelo buscapé encontrei o Pequenas Epifanias. Também lembro da letra redonda da Ana e de mim sentada no sofá da sala copiando o texto numa folha de caderno verde que ainda me acompanha. E eu pensava que ele era vivo. E sempre fico triste quando lembro que estava errada. E Caio trouxe Clarice, que trouxe O livro dos Prazeres que trouxe tanta coisa. Vixe, posso passar horas aqui...
um beijo grande,
ale
caio é caio, rita. é aquele que ajuda a gente naqueles dias de outono, quase inverno. no excesso de café e agosto. quando a gente percebe que sentir sede faz parte, mas atormenta. é tb aquele q nos lembra que dá pra sentir borboletas no estomago depois de 2 ou tres almocos e uns silencios. amo. ele e vc! e preciso desse livro hj pra completar a minha estante de caios! beijo! lets
Menina, fiquei com muita vontade de ler esse livro. Adorei o post! Eu tenho um livro assim da minha vida tb, é o Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, da Clarice. Já perdi as contas de qts vezes eu li, é uma terapia sempre... beijos
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