Frio frio frio
Ou um exercicio de adjetivos para explicar o que so é possivel sentir
Faz muito frio. Um frio total. Insuportável, incalculável, invivível. Não, não é esse frio que você conhece. Aquele frio de primeiro grau, que basta andar mais rápido que passa, ou pensar em outra coisa que ele fica mais quentinho. Não. É o frio absoluto. O FRIO, em caixa alta, com “fs” e “is” pontiagudos, “r” de brrrr! . Um frio completo e irrestrito, sem começo nem fim, congelador de ossos e pontas dos dedos. Quando ele aparece – e ele é sempre inesperado, feito visita de parente chato, chamada do telemarketing logo de manhã, aquelas coisas que você sabe que acontecem mas torce prá nunca passar por elas – quando o terrível frio surge, é impossível escutar até os pensamentos. Da vontade de sair gritando na rua de revolta, de como é que alguém passa por essa tortura superlativa assim calado e impassível?? Mas ninguém grita, porque para abrir a boca é preciso um esforço a mais e aí é escolher entre usar a energia que resta para esquentar o dedão do pé ou gritar enlouquecidamente. E o dedão sempre fala mais alto, porque, bom, um dedão congelado é um dedão imóvel nível Kill Bill, e isso também não é nada agradável. Mas é sempre possível gritar internamente muito e alto, já que além de andar rápido e imaginar uma cena meio embaçada com coisas derretendo de calor nos trópicos, úmidas e grudentas, ahhhhhhh, que maravilha!, não dá prá fazer mais nada. O frio versão areia movediça toma tudo, indignamente, monoassunto: – Mas que frio, hein! – Pois é, friozão. – É...
E ele é feio. O mundo fica em tons de cinza, preto e branco. Não há flores, grama, chuva, céu azul. Nem sorrisos. Um grande floco de algodão sem água. As pessoas descoloridas dentro das toucas de lã, pálidas e de cara fechada. De dentro dos capotes escuros e gelados ninguém olha para o lado. O outro sem o brilho do sol fica invisível, inexistente. Calor, nem humano. E aí o terrível frio também é solitário como um ciclo seco. Como as noites sem sonhos e sem sobressaltos. Manhã gelada sem bom-dia. Triste, triste, triste, como a música mais triste do mundo.
Esse frio, o Terrível Frio, vem de uma genealogia de coisas inagüentáveis. É irmão do Terrível Sono, aquele que aparece depois do almoço durante a reunião do trabalho, quando seus olhos cheios de areia lembram que foram abertos às seis da manhã e só vão se fechar à uma da madrugada do dia seguinte. Primo próximo da Terrível Saudade dos Domingos à Noite. Também é parente daquela terrivel vontade de estar com uma pessoa que não é sua. É fatal, infinito e corrói do mesmo jeito. Cansa, magoa, dói na alma, faz parar de respirar. Quando faz muito frio é tudo isso, parece que o mundo vai se acabar afogado em uma cerração gelada sem oxigênio. É como sobreviver sem amor, árvore seca de fruta amarga. Noite de insônia sem solução.
Mas o pior, o pior de tudo é que o frio é sempre, e não por acaso, enfrentado em luta solitária. Duelo de uma pessoa só pelas ruas vazias e escuras. Sim, o frio é também todo escuro. Sem a mão estendida para te ajudar. Gelo na alma, nas existências presente, passada e futura. Ninguém nunca me avisou que o frio era assim tão difícil. Por isso, que setembro venha logo em abril. Quero derreter em fogo de abraços e músicas e cores, sem meia-calça nem cachecol. Morrer de calor com grãos de areia grudados na pele e vento morno. Limonada gelada, picolé de fruta anunciado na gaita, rede balançando, vestido e pernilongo. O sol, lusco-fusco inteiro e amarelo só prá mim.